domingo, 4 de setembro de 2011

A Psicanálise e a Sociologia Contemporânea


       As teorias e os sistemas em psicologia mais tradicionais encontram na contemporaneidade um contexto social muito diverso daquele que lhes serviram de pano de fundo por ocasião de seu desenvolvimento. A psicanálise, por exemplo, surgiu em um contexto tradicional, onde os indivíduos possuíam identidades, modos de vida e papéis na sociedade mais ou menos fixos, o que contrasta com o que ocorre na atualidade. Entre a sociedade vienense da época de Freud e as sociedades da alta modernidade há uma separação histórica marcada por profundas transformações sociais e políticas que mudaram o mundo e que a essa altura não lembra em nada aquela sociedade fechada onde Freud desenvolveu suas idéias. Portanto, sendo a psicanálise um produto cultural de tal época, conclui-se que só pode ter grande eficácia em indivíduos contemporâneos e conterrâneos do pai da psicanálise. A ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade como determinantes de saúde ou doença mental encontra na atualidade uma série de “concorrentes” que não eram considerados anteriormente, pelo fato de não existirem ou pelo menos não afetarem substancialmente a vida das pessoas. A psicanálise, hoje, sendo levada a efeito à maneira de “doutrina”, fechada em si mesma, sofre 
uma insuficiência nos seus instrumentos interpretativos, no que se refere às novas modalidades de inscrição das subjetividades, que não eram e nem poderiam ser as mesmas de tempos idos.  Todo o “arsenal” teórico construído tempos atrás, tanto da psicanálise quanto de outros sistemas psicológicos, vão encontrar cada vez mais dificuldades para dar conta das psicopatologias modernas, caso suas idéias não acompanhem as transformações sociais que ocorreram e ocorrem na sociedade e as discussões decorrentes disso.

     A percepção de alguns sociólogos contemporâneos contribui para que sejam reexaminados alguns conceitos tradicionais utilizados pela psicologia. Temas como consumismo, felicidade e a reflexividade do eu foram analisados por esses sociólogos que lançaram novas luzes ao debate sobre a produção subjetividade frente às novas imposições da vida social e permitem novas formas de pensar as teorias e sistemas em psicologia.

     Diferentemente das sociedades tradicionais, onde a vida era conduzida por caminhos relativamente fixos, a alta modernidade se caracteriza por uma ampla gama de escolhas com as quais o sujeito se depara. Nesse contexto surge um sujeito autorreflexivo, que se pensa, que escolhe e é incitado a todo o momento a se pensar e a escolher. Na afirmação de Guiddens sobre o fato de que “não temos escolha, senão escolher”, percebe-se a potência dessas imposições, onde a escolha se encontra disponível à venda. Entre os bens de consumo mais propagandeados estão as identidades móveis e mutantes que ao serem “adquiridas” já carregam em si a programação para “sair de moda”, bem como de tudo mais que cerca essa identidade. Escolher e mudar de identidade, descartar o passado e colonizar o futuro como uma forma de consumo por antecipação, são estímulos muito fortes que pairam sobre o sujeito.  De forma contrária ao que ocorria em universos tradicionais, onde o indivíduo preocupava-se com o passado, na atualidade ocorre um desestímulo dessa preocupação. Eis aí uma motivação importante para que a psicanálise se alinhe às novas formas de pensar o sujeito em seu novo contexto, sob pena de se tornar ineficaz enquanto terapia, caso continue centrando somente no passado das pessoas as causas de suas problemáticas atuais. A propósito, a Terapia Cognitivo-comportamental encontra amplo terreno de ação quando o assunto é a desconsideração do passado e valorização do futuro.
     O consumismo é uma cultura imposta a todo o momento e se constitui em um poderoso mecanismo produtor de adoecimento, pois incita a mudança de identidade para logo em seguida desvalorizá-la e ofertar as próximas tendências a serem escolhidas e pagas. Impõem uma idéia de felicidade áqueles que a essa altura se sentem obrigados a se alinharem com a moda, as novas tecnologias e novos designs. O mercado de consumo aposta em nossa irracionalidade quando o assunto adquirir novos “bens” em busca de uma felicidade que é inatingível por conveniência desse mercado, onde, inclusive as pessoas são consideradas mercadorias, algo como manequins estáticos, outdoors ambulantes, imagens a serem consumidas...
     Bauman fala sobre um sentimento de integração social gerada pelo ato de consumir. O mercado impõe a idéia (e as pessoas aceitam) de que para se sentir “incluído” é necessário estar atualizado em matéria de consumo.  Em função disso as pessoas adoecem por que não conseguem se controlar e consomem demais ou porque não conseguem fazer frente aos gastos excessivos e consomem de menos, correndo o risco de sentirem-se excluídas por que não adequadas ás exigências da vida social.

     Certamente não se pode negar a genialidade de Freud. A questão é até que ponto seus conceitos são aplicáveis nos dias de hoje. O Complexo de Édipo, por exemplo, será que ele pode ser considerado um fenômeno universal, aplicável em qualquer sociedade; ou atemporal, podendo ser aceito em qualquer época depois da época de Freud? Até que ponto a tríade edípica pode ser considerada fator que determina estados normais ou patológicos? E com relação aos outros sistemas que vêem no sujeito somente condicionamentos, aprendizagens e programações, sem considerá-lo em sua dimensão social e histórica. Até que ponto podem ajudar de forma eficaz aqueles que buscam auxílio ao invés de simplesmente buscar “enterrar” os sintomas apresentados?
     A essas e a muitas outras questões, a sociologia contemporânea oferece material para debates que possibilitam novas leituras e outras formas de pensar o sujeito em sociedade, bem como as novas formas de produção de subjetividade impostas/exigidas na atualidade.


            

"A Adolescência" Contardo Calligaris. Publifolha - RESENHA




    
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e colunista da Folha de São Paulo. Italiano, hoje vive e clinica entre Nova York e São Paulo.
Autor de vários títulos de sucesso, entre eles: Cartas a um Jovem Terapeuta e A adolescência

 No livro “A adolescência”, Calligaris inicia com uma breve história fictícia à qual convida o leitor a fazer parte: após um acidente aéreo em algum lugar desconhecido da Amazônia, os sobreviventes são adotados por uma tribo de índios que os acolhe muito bem apesar de nunca terem tido contato com a civilização. Nos próximos 12 anos de convivência esses sobreviventes aprendem os costumes, a linguagem e as leis dessa tribo e passam a se sentir como parte dela. Aprendem que nessa sociedade, é importante se sobressair e adquirir destaque. Para tanto seria necessário se especializar em um dos campos que nessa sociedade, oferecem mais status. Os acolhidos absorvem a cultura dessa sociedade, observam, treinam e se especializam na pesca ou em serenatas com berimbau, que são as atividades que mais oferecem destaque e agora, próximo dos 12 anos de aprendizado, já se sentindo fortes, treinados e prontos o bastante para desafiar qualquer um nessas atividades, recebem a informação dos anciãos da tribo que deveriam aguardar mais dez anos para isso, pois talvez não esteja preparado o bastante. Os anciãos acrescentam ainda que esse “pequeno” atraso visa protege-los dos perigos que essas atividades representam e que teriam um prazo maior para se prepararem para vir a fazer efetivamente parte da tribo.      Após a narrativa da história, o autor pergunta ao leitor como se sentiria na pele dos aspirantes a membros da tribo diante dessa prorrogação. Não é difícil de imaginar...
     Através dessa figura, Contardo expõe o drama por que passa a criança, que tendo entendido quais as exigências para a entrada no mundo dos adultos e tendo para isso se preparado, encontram em determinado momento essa moratória que lhe impede de viver do modo para o qual se preparou e foi preparado.
     A resposta à pergunta, conforme o autor, provavelmente seria variado: raiva, ojeriza, desprezo e enfim, rebeldia. E acrescenta ainda que se houvesse uma tribo inimiga, seria o momento de considerar uma traição. Provavelmente, o leitor que se permitisse vivenciar a situação das personagens da história, voltaria a se agrupar com os companheiros do avião, que a essa altura estariam enfrentando a mesma situação, e acabariam constituindo uma espécie de tribo na tribo, outorgando-se mutuamente o reconhecimento que a sociedade parece temporariamente negar a todos, esse raciocínio parece explicar os motivos do período conturbado que é a adolescência, que além de coincidir com as alterações fisiológicas decorrentes da entrada na puberdade, coloca o jovem diante de um período de suspensão, onde não encontrando o reconhecimento como adulto na sociedade, vai buscá-lo com seus pares, tudo perfeitamente visualizável no dia-a-dia e quem se permitir lembrar-se de si mesmo nessa fase, vai achar que faz sentido.
     O autor afirma que a imposição dessa moratória já seria razão suficiente para que a adolescência assim criada e mantida fosse uma época da vida no mínimo inquieta. O jovem aprende os valores agradáveis à sociedade e entre eles o ideal da independência e quando está preparado para exercê-lo a moratória lhe veta esse ideal, condenando-o a ser dependente por mais algum tempo. Outro paradoxo é a frustração em função da moratória e a imposição que ele seja feliz, pois a idealização que sofre a adolescência a descreve como um momento de muitas felicidades. Junta-se a tudo isso a incerteza decorrente do saber quando inicia a adolescência e o não saber quando termina.
     Segundo Calligaris, a adolescência é uma criação relativamente nova, fruto de nossa época, e essa criação passa a ser problema quando o olhar dos adultos não reconhece nos jovens os sinais da passagem para a idade adulta. O adolescente olha para si no espelho e constata que não é mais criança e para crescer renuncia àquela proteção e solicitude que sua imagem infantil lhe garantia, para poder ter o reconhecimento que agora julga merecedor. Diante disso se encontra num momento, certamente desagradável, em quer não se julga mais criança e não consegue ser reconhecido como adulto. Entre a criança que se foi e o adulto que ainda não chega, o espelho do adolescente é freqüentemente vazio. Podemos entender então como essa época da vida possa ser campeã em fragilidade de autoestima, depressão e tentativa de suicídio. Esse trecho extraído do texto de Calligaris faz entender a gravidade que pode ter esse momento da vida onde a insegurança é um dos traços mais marcantes.
      Outra idéia interessante presente no livro, dá a entender que o problema não está somente no adolescente em relação aos adultos, mas também nos adultos em relação aos adolescentes, além do fato dos adultos serem contraditórios nos seus pedidos e exigências (conscientes e inconscientes), querem que de alguma maneira os adolescentes realizem seus ideais que não puderam realizar ou então de reprimirem no adolescente o que não á toa reprimiram em si mesmos.
     No decorrer da obra, o autor fala sobre o adolescente delinqüente; toxicômano; que se enfeia; barulhento, etc. todos atrás de reconhecimento, buscando por outras vias o que a sociedade de adultos lhes nega.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Alguns destaques do livro " MANICÔMIOS, PRISÕES E CONVENTOS"

 AUTOR: ERVING GOFFMANN
As instituições totais podem ser divididas em 5 categorias:
1-    Instituições criadas para cuidar de pessoas incapazes de cuidar de si mesmas, inofensivas, indefesas, como idosos, órfãos, cegos, indigentes;
2-    Instituições criadas para cuidar de pessoas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça a outras pessoas, a comunidade, que são os sanatórios para os doentes mentais, para os tuberculosos, os leprosos;
3-   Instituições totais para proteger a comunidade das outras pessoas que são as cadeias;
4-   Instituições para realizar de modo mais adequado o trabalho, como quartéis, internatos, colônias, grandes mansões;
5- Instituições que são refúgio do mundo, os mosteiros, conventos para os religiosos.

Quando resenhamos as diversas instituições coloca , Goffmann algumas são mais fechadas que outras, pois além do espaço físico existe o aspecto psicológico.
Um ponto central é que todas:  rompem com o processo natural da vida que é o de dormirem em determinado local, brincar em outro, trabalhar em outro, tudo isso com diferentes pessoas e sob diferentes autoridades e passarem a realizarem todas essas funções, ou seja todas as esferas da vida em um mesmo local e sob uma única autoridade.
Segundo ponto destacado é que cada fase de atividade diária é realizada na companhia imediata de um grupo de pessoas, relativamente grande, todas elas tratadas da mesma   forma e obrigadas fazerem as mesmas coisas e em conjunto.
Terceiro ponto essas atividades tem normas, regras extremamente rígidas e impostas de cima sem negociação.
Finalmente todas as varias atividades são reunidas em um plano racional único para atender aos objetivos oficiais da instituição.
O que são encontrados também em outros locais além das instituições totais, como por exemplo em:
-  estabelecimentos comerciais;
- estabelecimentos industriais;
- estabelecimentos educacionais;
     Cada vez mais com a introdução de refeitórios padronizados, uniformes, recursos de distração para seus participantes,  nos  moldes das instituições totais.
Dentro das I. Totais existem uma divisão:
1-    grupo dos internados;
2-    equipe de dirigentes, supervisores
Cada agrupamento tende a conceber o outro através de esteriótipos, em que os dirigentes vêem os internados como:
1-    amargos;
2-    reservados;
3-    culpados;
4-    não merecedores de confiança.



Em contrapartida os internados vêem os dirigentes como:

1-    condescendentes;
2-    arbitrários;
3-    mesquinhos;
4-    corruptos.
Os dirigentes tendem a se sentirem superiores, corretos.
Os internados tendem a se sentirem pelo menos sob alguns aspectos:
1-    inferiores;
2-    fracos;
3-    censuráveis;
4-    culpados.
Há uma grande distância social entre eles: Goffmann destaca: “até a conversa entre as fronteiras pode ser realizada em tom especial de voz”, com restrições de informações ocultando por exemplo:
1-    destino de viagem quando faziam, mesmo para alguma outra enfermaria;
2-     ocultamento de diagnostico;
3-    Tempo de internação;
4-    Autorização de visitas;
5-    Telefonemas.
Todas essas restrições dão uma base especifica da distancia e o controle dos dirigentes e seus internados, conservando os esteriotipos antagônicos.
O Mundo do Internado
Quando a estada é muito longa ocorre o que o autor chama de  desculturamento;  destreinamento; que o torna temporariamente incapaz.
Ao entrar em uma Instituição Total começa uma serie de rebaixamentos:
1-    degradações;
2-    humilhações;
3-    profanação do eu, pois o seu “eu” é sistematicamente mortificado.
As Principais Mortificações do Eu que as I. Totais promovem:
1-    barreiras entre o internado e o meio externo, com proibições iniciais de visitas e proibições de saídas o que assegura uma ruptura com os papéis anteriores;
2-    morte civil:  não compra, não participa de processos decisórios, não vê filho crescer;
3-    procedimentos padrão desde o seu ingresso: despe-se de todos os seus bens, corta-se o cabelo, diz-se suas obrigações de respeito, bem como maneiras de se comportar.
Ou  ele se revolta ou obedece sempre.
Os momentos iniciais de socialização podem incluir um teste de obediência ou um desafio de quebra de vontade; um internado que se mostre insolente pode receber castigo imediato e visível que aumente ate que explicitamente peça perdão ou se humilhe.
Sem chaves, sem bens  o internado pode ser obrigado a mudar de cela a fim de que não fique ligado a ela.
Psicologicamente um conjunto de bens individuais tem uma relação muito grande como “eu”. A pessoa geralmente tem um certo controle da maneira de se apresentar diante dos outros, para isso normalmente utiliza-se de cosméticos, roupas, e de locais para guardá-las: “estojo de identidades”, acessa a especialistas em apresentação: cabeleireiros, costureiros.


O que em uma I. Total todos esses       vínculos     são     cortados 
consequentemente a deformação pessoal é visível, gerando perda de sentido de segurança, angustia, alem das terapias de choque que geram o branquiamento dos cabelos o que para as mulheres principalmente é um  agravante abalo do “eu”.

Algumas Formas de Humilhação aos Internados:
1-    curvar-se;
2-    dirigir-se sempre com deferência: Sr., Sra;
3-    a equipe dirigente pode falar e gozar do internado como se não tivesse presente;
4-    em estabelecimentos militares o trabalho obrigatório com minúcias pode fazer com que os soldados sintam que seu tempo e esforço não tenham o menor valor;
5-    aceitar papeis que não se identificam;
6-    negação de relações heterossexuais pode provocar o medo da perda da masculinidade; 
7-    em campos de concentração os prisioneiros eram obrigados a surrar os outros presos.

Nas instituições Totais os territórios de “eu” são violados constantemente, pois as fronteiras que o individuo estabelece entre o seu ser     e o ambiente  é desrespeitada a todo momento.
Os presos e os doentes mentais    não podem impedir que os visitantes os vejam em circunstancias humilhantes.
Exemplo de outras humilhações: banheiros sem porta, tempo para ir urinar ou defecar.
Uma das formas mais eficazes de perturbar a “economia de ação” de uma pessoa é a obrigação de pedir permissão para realizar qualquer ato, desde um ir ao banheiro, pedir fósforos, lençóis limpos,  telefonar ou seja atividades secundarias que poderia ser realizadas sozinho.
Arregimentação: regras, regulamentos realizados em conjunto com outros grupos de internados.
No mundo externo a pessoa esta sob a autoridade de um único superior imediato, ligado ao trabalho ou sob a autoridade do cônjuge, na I. Total esta sob a autoridade de vários ao mesmo tempo.
Depoimento de um paciente:
“Sinto-me como algo entre um prisioneiro e um mendigo. Ao menor erro, ou sintoma nervoso, recusa de alimento, ofensa pessoal, a enfermeira me encaminha para a enfermaria “j””.
Até renunciar a certos níveis de sociabilidade com seus companheiros é um processo de mortificação que apresenta três problemas gerais: a I. T. perturbam as ações que na sociedade civil tem o papel de atestar que o autor é:
1-    adulto;
2-    tem autonomia;
3-    tem liberdade de ação.
A impossibilidade de manter esse tipo de competência executiva adulta,  ou pelo menos os seus símbolos pode provocar no internado o horror de sentir-se infantilizado.
Ele não pode nem externalizar o seu descontentamento para os seus familiares, pois corre o risco de ser usado como prova de seu estado psiquiátrico, religioso ou consciência política da pessoa.
Em um mosteiro contemporâneo,tudo serve para lembrar quem somos e quem é Deus.

Isso é complementado pela automortificação:
1-    restrição para renuncia;
2-    autoflagelação;
3-    inquisição para confissão .

Possíveis conseqüências:
1-    perda do sono;
2-    indecisão crônica;
3-    insuficiência de alimentação
4-    angústia.

                   O internado usara de diferentes táticas para adaptar-se
                   1-tatica do afastamento da situação: deixa de dar atenção ao 
                  a tudo, com exceção ao seu corpo tudo o resto ele se afasta;
         2-tática da intransigência: nega-se a cooperar;
         3-colonização:  o pouco do mundo externo que é dado ao
         estabelecimento é considerado para o internado como o todo,   
         e uma existência estável relativamente satisfatória, colonizado
         satisfeito com a instituição;
          4-a conversão: modo de adaptação ao ambiente o interno
          Parece aceitar a interpretação oficial e ser o interno perfeito.


         Se o colonizado constitui na medida do possível uma           
         Comunidade livre para si mesmo, o convertido aceita uma  
         Tática mais disciplinada, moralista e esta sempre a disposição.




Diferenças das Instituições Totais

Alguns doentes mentais da classe baixa dos hospitais psiquiátricos  que vieram de: orfanatos, reformatórios e cadeias, tendem a ver o hospital apenas como outra instituição na qual podem aplicar as técnicas de adaptação já
Apreendidas e aperfeiçoadas em instituições semelhantes.
A viração não representa uma carreira moral, mas uma tática que já faz parte de sua segunda natureza.
Alguns temas predominantes da cultura do internado: cria histórias tristes, um tipo de lamentação ou defesa, o “eu” do internado é o foco de interesse, com excesso de piedade de si mesmo, o que a equipe diretora constantemente desmente.

Objetivos confessados da Instituição:
1-    realização de objetivos econômicos;
2-    educação e instrução;
3-    tratamento medico ou psiquiátrico;
4-    purificação religiosa;
5-    proteção da comunidade mais ampla e segundo  sugestão
de um estudioso das prisões, incapacitação, retribuição, intimidação e reforma.
Segundo Goffmann existem esquemas de interpretação da I. T. que começam a atuar automaticamente logo que o internado e admitido, um homem quando é colocado:
1-    numa prisão política: traidor;
2-    numa cadeia: um delinqüente;
3-    num hospital psiquiátrico: deve estar louco, senão por que estaria aí?

Essa identificação automática não é apenas uma forma de dar nomes, mas também esta no centro de um meio básico de controle social. Todos os desejos e pedidos por mais razoáveis que sejam por parte do internado são considerados pela equipe como prova da doença mental, um SINTOMA.
A normalidade nunca é reconhecida pelo auxiliar num ambiente em que a anormalidade é a expectativa normal, e reforçada pelos médicos.
Nas prisões encontramos um conflito atual entre a teoria psiquiátrica e a teoria da fraqueza moral do crime. Nos conventos encontramos teorias a respeito das formas pelas quais um espírito pode ser  forte ou fraco.
Existe a crença que se um   homem for levado ao seu estado de ruptura será depois incapaz de apresentar qualquer resistência.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Jung e os Sonhos


     Entre as correntes psicológicas que se desenvolveram a partir da psicanálise, as teorias desenvolvidas por Carl Gustav Jung atribuíram aos sonhos um papel mais abrangente na vida das pessoas. Para ele, os sonhos são uma ponte de ligação entre os níveis inconsciente e consciente, e não apenas uma maneira pela qual o aparelho psíquico deixa revelar desejos ocultos, mas sim o modo como o psiquismo fornece à consciência elementos de equilíbrio por meio de uma atitude compensatória. Na busca por esse equilíbrio, personagens arquetípicas interagem nos sonhos em um conflito que procura trazer ao consciente os conteúdos do inconsciente. Entre essas personagens, estão a “anima” (força feminina na psique dos homens), o “animus” (força masculina na psique das mulheres) e a sombra (aspectos indesejáveis de nossa personalidade). Dessa interação, surge a possibilidade de que a carga emocional envolvida nos complexos seja - via sonho - trazida à tona, tornando-se “patrimônio” consciente do indivíduo, proporcionando alívio na apresentação de seus sintomas.
     Segundo Jung, os conteúdos do inconsciente são simbólicos, ou seja, são elementos aos quais estariam associados uma imensidade de significados não disponíveis ao nível consciente. São heranças recebidas da humanidade e estariam “armazenadas” no que ele chamou de “inconsciente coletivo”, através do qual, alguns traços e imagens inconscientes seriam comuns a todas as pessoas.
     Em razão dessa apresentação na forma de símbolos, os sonhos freqüentemente mostram imagens que nos parecem ridículas, banais e muitas vezes contraditórias. Se parecem tão diferentes da maneira como pensamos enquanto nos encontramos no estado de vigília que nos sentimos inclinados a dar-lhes menos importância. No entanto, Jung afirma que eles se movem no sentido de proporcionar um diálogo entre os níveis de nosso psiquismo, reclamando a resolução de problemáticas que afetam o ser - humano.

O Estigma da Loucura e a Perda da Autonomia

Alfredo Naffah Neto
Psicólogo; Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo _ USP; Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo _ PUC; Professor-Titular da PUC-SP, vinculado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
O presente ensaio tematiza o estigma da loucura e a perda de autonomia que sofrem todos aqueles
que recebem a sua marca. Inicia seu percurso reflexivo analisando um conto de Gabriel García Márquez,
desloca-se em seguida para as memórias de Haim Grünspun, do Hospital Franco da Rocha, o Juquery,
e para relatos de experiências psiquiátricas alternativas _ no caso, a Clínica Laborde, no Vale do Loire,
França. Através dessas fontes, procura descrever o processo através do qual o louco perde a sua condicão
de sujeito para a sociedade a qual pertence e o papel que desempenha a psiquiatria nesse processo.
Utiliza, nesse debate, citações de Esquirol, Nietzsche, Foucault, Franco da Rocha e Ângela Nobre
de Andrade, além de García Márquez e Haim Grünspun.
UNITERMOS _ Sujeito, doença mental, moralidade e psiquiatria
Gabriel García Márquez, num de seus Doze Contos Peregrinos, intitulado "Só vim telefonar" (1), dá-nos uma das mais belas descrições literárias do estigma da loucura e da conseqüente perda de autonomia que ela impõe a quem recebe sua marca. Vale a pena deter-nos nessa criação literária e analisar os paradoxos que ela traça e explora, num limite que beira as raias do absurdo.
Maria de la Luz Cervantes, a personagem central, é uma atriz mexicana, casada com um prestidigitador de salão, a quem acontece o acidente imprevisível de ter o carro quebrado na estrada, numa tarde de chuvas primaveris. Ao fazer sinais na estrada, em busca de socorro, surge mais um imprevisto: o único veículo que atende ao seu sinal e pára, para lhe dar uma carona, é um ônibus estranho, repleto de mulheres sonolentas, todas envoltas em cobertores. Maria ainda não sabe, mas acaba de entrar num ônibus que carrega as loucas de um hospício; sabe ainda menos que essa é uma porta que possui somente entrada, nenhuma saída.
Enrola-se num cobertor e adormece; quando o ônibus chega ao seu destino, Maria nota coisas estranhas: ao tentar chegar ao edifício, um guarda manda-a entrar numa fila. Quando pergunta por telefone, respondem-lhe de um jeito dissimulado: "Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui", como que seguindo aquele velho preceito de que não se deve negar nada a um louco, confrontando-o diretamente.
É evidente que, no interior do hospício, não encontram o nome de Maria na lista das pacientes e que a enfermeira-chefe estranha que ela não leve a identificação num cartão costurado no sutiã, como todas as recém-chegadas, mas isso naquele contexto não significa muita coisa: se ela estava no ônibus do sanatório é porque é uma paciente, identificável ou não. Ou seja, no interior de um hospício os códigos identificatórios seguem um sistema rigorosamente binário: ou se é funcionário ou se é louco; como Maria não é funcionária, segue-se que... "Como é o seu nome?", pergunta-lhe a superiora. Ela dá o seu nome e acrescenta: "É que eu só vim para telefonar". Como resposta, recebe um condescendente: "Está bem, beleza, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã". Resposta que transfere para um amanhã, incessantemente prorrogado, a promessa de contato com o mundo exterior.
Isso significa que, ali, a palavra de Maria não vale pelo que diz, que _ para aquela gente _ seu discurso possui apenas valor de sintoma. Sua afirmação: "É que eu só vim para telefonar" pode significar duas coisas: ou que está em pleno delírio, ou que está tentando um estratagema ingênuo para fugir do hospício; nunca que veio, de fato, para telefonar. Afinal, quem se desloca até um hospício _ normalmente cercado de muros e portões _ para telefonar? Evidentemente, as suas testemunhas possíveis _ o motorista do ônibus e a mulher que lhe deu o cobertor, quando entrou no veículo _ a essa hora já estão fora de circuito; além do mais, quem iria se lembrar exatamente como tudo aconteceu? O fato é que ao entrar naquele ônibus Maria tornara-se uma louca, perdendo a autonomia no instante exato em que recebia, como uma marca em fogo, o estigma da loucura. Esquirol, com a sua psiquiatria moralista, dizia que: "Existem alienados cujo delírio é quase imperceptível; não existe um no qual as paixões, as afeições morais, não sejam desordenadas, pervertidas ou anuladas...." (2). Seguindo este preceito é preciso, pois, todo o cuidado para não se deixar enganar por eles, porquanto todos têm o pensamento perturbado, sofrem de desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre (3).
Na esteira desse código, os funcionários do hospício não se deixarão seduzir por Maria, seus delírios telefônicos, suas súplicas. Se até então o único indício de sua doença era o fato de ter entrado no hospício com as outras pacientes, as suas reações frente ao regime manicomial _ tentativas de fuga, horror e descontrole emocional diante do que vê _ logo criarão outros indícios, estes sim, "inquestionáveis". Tanto assim que logo recebe inscrição, número de série, um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e uma qualificação, escrita à mão pelo diretor: agitada. A marca da doença está ratificada, consumada.
A grande maestria de García Márquez, nesse conto, consiste em ir alinhavando um conjunto de circunstâncias, de acasos, e em fazer com que, na sua articulação, também casual, eles produzam um destino inexorável; um pouco como nas tragédias gregas. Dentro dessa proposta literária, é proposital que a personagem em questão não possua um marido muito preocupado com as suas andanças e sumiços; já tendo sido abandonado por ela outras vezes e tendo sérias desconfianças de que ela o trai com um jovem "consolador de aluguel de mulheres casadas", o Mago Saturnino acaba por se convencer de que esse sumiço significa mais um dos abandonos dessa mulher de gênio irascível e sexualidade descontrolada. Assim, quando Maria, após muitos sofrimentos _ e aproveitando-se de um descuido dos funcionários _ consegue finalmente chegar a um telefone e ligar para o marido, dizendo-lhe: "Coelho, minha vida", recebe como resposta um sonoro:"Puta!" e o telefone desligado. Ocorre, então, a sua segunda tentativa de fuga, jogando-se contra o vitral do jardim e caindo banhada em sangue. Se antes já fora amarrada por punhos e pés à cama, agora é arrastada ao pavilhão das loucas perigosas, "acalmada" com uma mangueira de água gelada e com injeção de terebentina nas pernas, para que a inflamação não lhe permita caminhar. Assim, Maria só vai conseguir avisar o marido do seu destino quando aceita as seduções sexuais da guarda da noite, Herculina, em troca do favor do telefonema.
Mas é evidente que quando o discurso de Maria _ como o de todos os loucos _ perde credibilidade, essa potência da qual é despojada desloca-se para alguém: a figura do médico, o único intérprete credenciado, detentor da "verdade" do louco, portanto, de um poder absoluto sobre ele. A exibição desse saber/poder aparece no diálogo do diretor do hospício com o Mago Saturnino, logo depois de sua chegada para visitar Maria: "A única certeza é que o seu estado é grave", diz o diretor. "Que esquisito", replica Saturnino, "sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio". "Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem. Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte", conclui o diretor, como um grande sábio ao finalizar a explicação para um leigo, um não-iniciado.
E o Mago Saturnino _ como todo mundo _ acredita na palavra da autoridade. Afinal, quem pode entender melhor de "condutas latentes que explodem sem mais nem menos" do que o médico? É evidente que a palavra da autoridade vem, aqui, se amoldar a todas as dúvidas que Saturnino sempre teve sobre o gênio descontrolado de Maria, com todas as suas idas e voltas. Finalmente, aparecia uma figura que, com autoridade e credibilidade inquestionáveis, propunha-se a controlar o gênio irascível e imprevisível de Maria, a curá-la do mal dessas "condutas latentes que explodem" de repente e deixam a gente sem saber o que fazer. O desejo inconfesso do Mago Saturnino _ controlar os arroubos de Maria _ realizar-se-ia, pois, através do diretor do hospício.
Restava ainda _ para confirmar as palavras do diretor _ o desespero total de Maria, a "explodir" numa conduta descontrolada quando percebe que seu marido, o único que poderia libertá-la, também fora capturado pelo sistema. "Então", escreve García Márquez, "agarrou-se ao pescoço do marido, gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre as suas costas" (4). Observe-se aí a expressão "gritando como uma verdadeira louca", que descreve a transfiguração de Maria naquilo que uma conjunção de acasos transformara num destino: finalmente, ela encarnava a loucura. Mas não a loucura "essência natural", oriunda de algum mau funcionamento biofisiológico; essa loucura fora produzida socialmente, construída parte por parte, detalhe por detalhe. Sua gênese histórica jazia em dois acasos: seu carro ter-se quebrado na estrada, numa tarde de chuvas, e ela ter pedido carona a um ônibus desconhecido.
Mas quantas avarias nós todos não enfrentamos ao longo do tempo e em quantos ônibus desconhecidos não nos metemos pela vida afora? Por que, então, não nos tornamos também loucos? Este percurso reflexivo só nos permite uma resposta: por mero acaso.
O conto de García Márquez tematiza a condição do louco, o estigma dessa marca e a conseqüente perda de autonomia que ela implica. Poderíamos resumir essa condição numa só frase: o louco perde _ para a sociedade a qual pertence _ a sua condição de sujeito, no sentido etimológico do termo: sub-jectum, aquele que subjaz às ações, às enunciações do discurso. Desde o instante em que a marca da loucura lhe foi imputada, é como se no lugar do sujeito aparecesse a doença mental; então, o discurso e as ações expressas pelo louco cessam de significar em si próprias, tornando-se apenas sintomas da doença. Julgado incapaz de decidir sobre o seu destino em todas as instâncias, que vão desde a liberdade de locomoção até as decisões sobre a forma de tratamento que recebe, o louco é transformado num fantoche que deve ser manipulado pelo poder/saber médico.
Nas suas memórias sobre o Juquery, o Hospital Franco da Rocha, quando ainda era um médico-estagiário, Haim Grünspun nos conta o caso da mulata Judith, internada com "psicose pós-parto, num quadro confusional muito grave e que melhorou após um tempo de tratamento" (5). O médico mandou-a, então, para casa, durante uma semana, após o que deveria voltar ao hospital para ser reavaliada e se decidir sobre sua alta. O que Haim nos relata é a conversa que ouviu entre ela e o marido, na viagem de trem em que retornava para essa avaliação. Retomo, em seguida, alguns fragmentos dessas falas, para exemplificar o que estou denominando perda da condição de sujeito.
"Minha Santa, não precisa se afligir tanto. Você está bem. Eu vou explicar tudo direitinho ao médico, e ele vai dizer que você está curada". "Você viu como consegui cuidar do nenê e que até o seio eu dei para mamar e que não precisei de socorro de ninguém, que saí sozinha, que fiz compras, dei banho na menina e no nenê e nem tua mãe ficou alarmada e ficou até admirada com o que eu consegui fazer?" "Mas é lógico, minha Santa, igual como você sempre fez e nunca se importou nem com o julgamento de tua mãe nem com a ranzinzice e resmungos da minha" "E você conta para o doutor que posso até ficar sozinha sem a ajuda das velhas. Que não tem perigo de eu ficar nervosa como fiquei (...). E se eu precisar de choque outra vez, se o médico achar que falta ainda para eu me curar? Acho que não agüento ficar mais naquele pavilhão. Eu soube que tinha gente que vinha uma vez por semana só tomar o choque e voltar para casa. Você fala com o doutor, que você me traz e que você pode perder um dia por semana o trabalho, para me trazer (...). Você conta para ele que dormi todas as noites..." e a conversa continuava, no mesmo tom ansioso, de alguém que tinha perfeita consciência de que a sua palavra perdera todo o valor, de que seria necessário o testemunho do marido para convencer o médico da sua cura. "Não preciso dizer nada, minha Santa, acho que basta você falar com o médico. Não preciso fazer a sua defesa. Você não é acusada de nada. Você só esteve doente e agora está ficando boa", conclui o marido, procurando questionar a sua posição de ré. Mas Judith sabe que, uma vez recebida a marca da loucura, o seu fantasma nunca mais desaparece: "Viu, mesmo você, que gosta de mim, acha que estou ficando, não disse que já estou". Ou seja, ela percebe que tudo o que o marido testemunhara não era suficiente para convencê-lo completamente da sua cura. Quando ele responde, confirma a suspeita da mulher de que a última palavra cabe ao médico: "Mas eu não sou médico, por isso é que nós vamos ao médico. Você é que não está com confiança. Eu confio muito". O final da conversa é patético: Judith percebe que, apesar da presença e solidariedade do marido, encontra-se irremediavelmente nessa tentativa de resgate da sua condição de sujeito: "É verdade, a empreitada é minha, eu é que vou falar. Não vou sucumbir ao medo, não vou me abater como covarde. Não vou fazer alarma, não vou gritar, não vou chorar. Vou simplesmente contar como passei desde o dia que saí, e ele, se quiser, que acredite".
Algumas questões podem ser colocadas a partir daí. A primeira delas _ de caráter filosófico _ é até que ponto a condição de sujeito não é, em si mesma, uma ficção. Nietzsche, por exemplo, considerava a postulação do sujeito como "uma simplificação para designar, enquanto tal, a força que aloca, inventa, pensa, por oposição a toda alocação, invenção, pensamento" (6). Essa consideração cai como uma luva no âmbito da teoria das forças, que caracterizou o terceiro período dos escritos nietzschianos e que interpreta o mundo microscopicamente, a partir dos múltiplos campos de força que o constituem e lhe dão forma a cada momento. Dentro desta concepção, qualquer ação humana é produzida não por um sujeito autônomo, mas pela conjuntura singular de forças, a maior parte delas inconscientes, que articulam o desenrolar do devir humano. A postulação do sujeito torna-se, então, apenas uma questão gramatical, uma ficção criada por certas estruturas de linguagem. Entretanto, em momento nenhum Nietzsche desconhece que, ficção ou não, ela seja uma forma de interpretação de mundo ou, mais do que isso, que seja a forma de interpretação dominante no mundo contemporâneo _ aquela que fundamenta a existência das leis, dos códigos penais e da própria categoria do cidadão, para os quais é indispensável a idéia de um sujeito responsável pelos seus atos. Que é, portanto, através desse código interpretante que os direitos civis de alguém podem ser cassados ou restituídos. É, pois, nesse âmbito que se deve interpretar a perda da condição de sujeito pelo louco, problema mais de caráter político do que ontológico ou cosmológico.
Outra questão que pode surgir, esta de cunho psiquiátrico, é se, de fato, a loucura não priva o ser humano da sua capacidade de julgamento, de tomar decisões, portanto da sua condição de sujeito. Seus argumentos são a existência de delírios, alucinações, que _ por ocasião dos surtos _ colocam o louco numa incapacidade para distinguir entre o falso e o verdadeiro, a fantasia e a realidade. Conclui perguntando se essa condição não justifica todo o confinamento e tutela do louco, geridos pelo poder/saber médico. Contra esse argumento, sempre é possível se invocar, como testemunha, experiências como a empreendida pela Clínica Laborde, criada por Jean Oury e Félix Guattari _ entre outros _ no Vale do Loire, França. Lá, como em toda instituição, pode-se encontrar pacientes em diferentes estados, com ou sem delírios, alucinações e outros tipos de sintoma. Entretanto, funciona sempre como uma comunidade aberta, autogerida, onde os pacientes se misturam aos estagiários e aos funcionários, onde as divisões de trabalho seguem as preferências e as possibilidades de cada um, onde há total disponibilidade de circulação pelos vários ambientes: cozinha, enfermaria, sala de refeições, sala de TV, biblioteca, ateliers, etc. Onde, enfim, estimula-se o contato com a alteridade em todos os níveis. Como comenta Nobre de Andrade, a partir de um estágio realizado nessa clínica: "Essa vivência do insólito (daquilo que não está capturado pelo nosso código representacional e identitário) está presente na nossa vida e podemos lidar com ela de duas formas: acolhê-la ou negá-la. Não precisamos estar em contato com psicóticos para vivermos `isso', mas, nesse contato, experenciamos essa `insolidez' de um modo mais forte. A tendência da sociedade é negar essas vivências ou, quando isso não é possível, enquadrá-las numa doença chamada loucura, tornando-as ainda mais ameaçadoras. A beleza de Laborde está exatamente em nos permitir acolher esse insólito, vivê-lo como algo transformador, que abre passagens, traz à tona afetos até então desconhecidos. Afetos que apontam para aquilo que temos de mais bonito e criativo: a nossa potência de viver a vida em sua plenitude, acima e aquém dos códigos aprisionantes. A sensação de `suavidade' (7).
É, de fato, um clima de liberdade e solidariedade que passa através dos seus relatos: "Fui motorista do furgão (transporte para aqueles que moravam em Blois e freqüentavam a Laborde como hospital-dia) diversas vezes e nunca me esqueço da primeira vez: "eu estava muito ansiosa, pois nunca tinha dirigido um carro grande como aquele; é claro que todos os `maluquinhos' sentiram e perguntaram logo se era a primeira vez que eu dirigia aquele carro. Confirmei. Imediatamente começaram a me acalmar, dizendo que eu estava indo muito bem, que eu era boa na direção, etc. Além dos elogios, agradeciam muito, como se eu estivesse fazendo um grande favor (havia uma falta crônica de motoristas para o furgão). Eu gostava muito de fazer aquelas viagens...Era sempre o mesmo grupo de pessoas e rolava um afeto gostoso ali dentro daquele carro... Eu já sabia onde deixar cada um... E as conversas (e silêncios) eram suaves e aconchegantes. Às vezes, após deixar o último passageiro na estação, eu me sentava num restaurante à beira do Loire para beber um copo de vinho... Fim de tarde e o pôr do sol... Realmente, não dá para sair imune de tudo isso" (8).
Também no seu contato com pacientes de Laborde, Nobude Andrade _ com paciência e persistência _ sempre descobria alguma forma possível de contato, de forma de humanidade a ser partilhada: "Do outro lado do extenso gramado em frente do castelo, eu encontrava sempre o Felipe. `Meu grande-pequeno preferido Felipe'. Ele passava horas e horas agachado ali, brincando com seus bichos de pelúcia, suas bonecas Barbies, seus bichinhos de plástico, etc. Contaram-me que ele corria para lá mesmo quando nevava....E corria mesmo! Eu o via sempre atravessar aquele gramado, correndo naquele seu jeito torto, em direção aos seus brinquedos, levando nas mãos uma jarra de café e um pote de bloquinhos de açúcar... Eu não entendia como tudo aquilo não caía no chão... O Felipe dormia no parque (...). A minha aproximação (...) foi difícil e, muitas vezes, frustrante. Eu ficava atrás dele... Rodeava-o... Sentava do seu lado no gramado... Mas ele não parecia notar a minha presença. E quando se dirigia a mim, eu não entendia o que falava. Esse contato começou pelo cigarro. Era a única coisa que eu entendia: quando ele me pedia `um Marlboro'. Mas algo vai acontecendo sem você se dar conta e, de repente, lá estava eu, sentada ao lado de Felipe, num banco do jardim, `conversando'. Literalmente, conversando... Não me perguntem sobre o que conversávamos... Não sei. E não importa. Importa que, entre outras coisas, eu consegui entender que ele gostava de música e lhe disse que adorava uma música de Jacques Brel, `Ne me quitte pas'. E Felipe cantou a música inteira para mim..."(9).
A partir desse único exemplo pode-se constatar que mesmo pacientes que seriam considerados psiquiatricamente bastante comprometidos pela ciência acadêmica vigente podem viver num clima de liberdade, autonomia e consideração mútua, dependendo apenas de que se lhes respeite a condição de seres humanos. Não se trata absolutamente de tingir a loucura com cores românticas: sem dúvida, são pessoas que vivem experiências difíceis, doloridas, dilacerantes, experiências que _ na maior parte das vezes _ não encontram uma alocação possível na esfera gregária do sujeito e que resistem às formas de comunicação pelos códigos partilhados. Mas que, nem por isso, são menos humanas, menos passíveis de reconhecimento e de solidariedade.
Pela genealogia traçada por Foucault _ e já inaugurada por Nietzsche, antes dele _ o grande problema da psiquiatria é ter se tornado, desde os tempos de Hoffbauer e Esquirol, no início do século XIX, uma disciplina moral. Esquirol avaliava o grau de sanidade e loucura dos seus pacientes pelas suas afeições morais. Se eram "desordenadas", "pervertidas", isso era sinal de alienação; já a cura significava "a volta às afeições morais dentro dos seus justos limites, o desejo de rever seus amigos, seus filhos, as lágrimas de sensibilidade, a necessidade de abrir seu coração, de estar com sua família, de retomar seus hábitos" (2). Na história da psiquiatria brasileira, Franco da Rocha foi talvez um dos mais fiés discípulos dessa ciência moralista. Para atestar isso basta ler os seus preceitos: "Há indivíduos, e contam-se por legiões, que não são declaradamente loucos nem de mentalidade perfeitamente normal: são os degenerados que, gradativamente, sem linha bem definida, estabelecem a transição entre o louco e o são de espírito" (10). "Ao grupo de degenerados vêm juntar-se, muito naturalmente, os desclassificados da sociedade. Denominamos desclassificados a uma série de tipos especiais que não cabem nem na sociedade nem no hospício (...). Eles estão na rua, por toda parte. Agite-se um pouco a sociedade por qualquer motivo, e eles surgirão logo. São candidatos constantes ao hospício" (11). "Os revolucionários são os companheiros dos paranóicos, com os quais se confundem muitas vezes, com a diferença de que os paranóicos revelam perturbações intelectuais que os excluem mais depressa da comunhão social, por darem mais na vista de todos" (12). "O sonho de grandeza do criminoso, ora oculto, ora bem claro, revela-se por demais evidente nos anarquistas e nos magnaticidas. A egofilia nestes, não tendo derivação na arte, como soe acontecer com o poeta, expande-se nas ruidosas manifestações contra a moral vigente, contra a lei, contra tudo"(13).
Uma psiquiatria dessa índole está, sem dúvida, mais perto da política do que da medicina ou da psicologia _ e da política reacionária, que funciona como leão de chácara das classes e culturas dominantes para a manutenção do status quo. É pois, desse mesmo Franco da Rocha, que podemos ouvir as seguintes advertências: "A liberdade, quando se trata de doidos, não pode deixar de ser muito relativa. A preocupação de evitar o aspecto de prisão, de dar ao asilo a aparência de habitação comum, tem sido um pouco exagerada por alguns alienistas. O caráter de prisão é, no entanto, inevitável: quando não estiver nos muros e janelas gradeados, estará no regímen, no regulamento um tanto severo, indispensável para um grande número de doentes. Esse regime, porém, não impedirá o gozo de ampla liberdade aos que se achem em condições de usufruí-la. Um bom asilo deve ter secções diversas, nas quais a liberdade se gradue pelo estado mental dos pensionistas. O excesso de zelo pela liberdade dos loucos pode facilmente degenerar em futilidade" (14).
Então, fico pensando: quem sabe, por um desses acasos da vida, o Dr. Franco da Rocha não andou pelo México, quem sabe não era ele o chefe do hospício onde foi parar Maria de la Luz Cervantes, o mesmo que conversou com o Mago Saturnino? Ou, então, quem sabe Gabriel García Márquez não se enganou: a atriz não se chamava Maria de la Luz Cervantes, mas Maria da Silva, o país não era o México, mas o Brasil, e o hospício não era o Juquery? Vai saber...
Abstract _ Madness Stigma and Loss of Autonomy
The main subject of this study is the madness stigma and the loss of autonomy, suffered by those who are marked by it. The author begins his reflections by analyzing a story written by Gabriel Garcia Marquez, then the memories by Haim Grünspun of the Franco da Rocha Hospital ("Juquery"), and the reports on psychiatric alternative experiences, such as in the Laborde Clinic, in Loire Valley, France. Using these sources, the author describes the process through which an insane person looses his/her condition as an individual for the society in which he/she belongs, as well as the role played by psychiatry in this process.
In this debate, the author utilizes quotations of Esquirol, Nietzsche, Foucault, Franco da Rocha and Ângela Nobre de Andrade, in addition to Garcia Marquez and Haim Grünspun.
Referências
  1. Márquez GG. Só vim telefonar. In: ______. Doze contos peregrinos. trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 1992.
  2. Esquirol. Citado em Foucault M. A casa dos loucos. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979: 121.
  3. A prática de internamento dos loucos, no começo do século XIX, coincide, segundo Foucault, com um momento em que a loucura passa a ser concebida menos como uma perturbação de julgamento, uma forma de erro ou de ilusão - que, enquanto tal, permitira a convivência com o louco sem grande perigo, até então - e mais como uma perturbação no eixo paixão-vontade-liberdade, ou seja, como perturbação das afeições morais. É precisamente isso que a torna perigosa para a sociedade, passível de confinamento. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  4. Márquez GG. Op. cit. 1992: 123.
  5. Grünspun H. Mulata Judith. In: Trem para o hospício. São Paulo: Cultura, 1980: 73.
  6. Nietzsche F. Fragmento póstumo 2[152], outono de 1885 - outono de 1886. In: ______. Oevres philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1978. v.12: 142.
  7. Andrade AN. A angústia frente ao caos: um estudo genealógico da formação do psicólogo clínico (tese de doutorado). São Paulo: PUC, 1996: 104.
  8. Andrade AN. Op.cit. 1996: 106.
  9. Andrade AN. Op.cit. 1996: 108-9.
  10. Franco da Rocha. Esboço de psiquiatria forense. Citado em Cunha MCP. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986: 51.
  11. Franco da Rocha. Causas da loucura. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 51.
  12. Franco da Rocha. Contribuition a l'étude de la folie dans la race noir. Citado em Cunha MCP. Op. cit.
    1986: 52.
  13. Franco da Rocha. Do delírio em geral. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 52.
  14. Franco da Rocha. Hospício e colônias do Juquery. Citado em Cunha MCP. Op.cit. 1986: 88.
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